segunda-feira, 10 de novembro de 2008

DESPERTAR - ML/ 98


Despertar

Sábado, uma semana inteira de chuva, os primeiros raios de sol pirilampeiam entre os sarrafos da persiana. Aquela montanha de roupa suja clama pela minha presença no ritmo insistente tic-tac do relógio. Como fugir desse estigma feminino?
Fico preguiçosa. Sabe do que mais? Acho que vou ficar por aqui bem quietinha. Nem vou me mexer muito... durmo até cansar, almoço qualquer coisa de ontem e volto correndo; com certeza não vai dar tempo de esfriar o meu “buraco”.
No pátio o cachorro teima em arrastar a corrente de um lado a outro. Minha cabeça dói - resultado de outra noite insone bebendo, fumando e escutando músicas antigas. Procuro o relógio na mesinha de cabeceira... vejo que já é demasiado tarde. Grande coisa! Perdura a preguiça. O braço ficou dormente, procuro uma posição melhor e me deparo com a figura da mulher nua, deitada na cama de lençóis vermelhos; preciso mudar essa moldura ou os cupins comerão o corpo dela também. Viro a cabeça para o lado, observo a porta entreaberta do roupeiro antigo que foi da vovó - uma porta sempre range, desde a época em que ela era uma moçoila de longos cabelos negros. Éramos tão diferentes. Ela a calmaria e eu a tempestade, sempre resmungava contra as minhas atitudes revolucionárias, muito me surpreendeu quando me deixou, por escrito, esse móvel de herança.
O vizinho ligou o som do carro, vai começar a “Maratona Janis Joplin” para lavar, secar e encerar o carro. Um dia ainda me encho de raiva e faço o infeliz desligar essa porcaria! Não tem respeito! Pelo menos podia trocar a fita!! Eu não suporto essa cabeluda! O que pode haver em comum entre um mauricinho engomado e uma criatura que não tomava banho!?
Acho que vou levantar para tomar um chimarrão, aproveito para colocar algo decente no som... ou não... Melhor ficar aqui e ignorar, logo o sono volta. Esfrego o rosto, deslizo a mão no corpo que definitivamente não é mais o mesmo. Outra vez procuro o relógio. Como se o fato de tê-lo na mão pudesse impedir o movimento dos ponteiros. Tic tac... tic tac... tic tac...
Na infância aprendi o significado da palavra notívaga e, como eu não era outra coisa além de um ser da noite, cresci acostumada a virar a noite lendo ou na frente da televisão. Papai achava graça e não se importava com a minha cara de cama ainda na hora do almoço; ele também era assim. Ah, meu querido, que saudade eu tenho, às vezes sonho que vens trazendo as chupetas lambuzadas no mel:
- Tenho aqui um sonífero de anjinho, só faz efeito para os verdadeiros anjinhos. Aqueles que caíram das nuvens e não conseguiram voar de volta pro paraíso... vamos ver quem chupa tudo e dorme igual anjinho?
E dormíamos faceiros, sem reclamar, querendo ser mesmo um anjinho perdido.
Me reviro. A essa altura a colcha já caiu no chão. O sol bate forte na janela querendo entrar. O quê esse inconveniente quer?? Não pode voltar mais tarde? Quero dormir!! Preciso dormir!!
Ouço passos cambaleantes, a porta do quarto abre devagarzinho, apenas um vulto na penumbra do corredor escurecido.
- Entra querido... vem com a mamãe!
E agarro aquele corpinho pequeno, tão quentinho, cheirando a leite, trago-o para junto de mim, aperto carinhosamente aquele serzinho que é parte de mim como que tentando colocá-lo de volta ao lugar de origem, puxo as cobertas, somente uns minutos de olhos fechados. Ele esperneia:
- "Nãaaaao mãmanhê!! Me lága, me solta!! Quelo bincá... vem mãmanhê, vamo paxeá”!!?
Ora tenha dó, quem resistiria a um pedido tão mimoso?
A cama que me espere.

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